ESPECIALISTAS DE QUITANDA

Quando meu filho nasceu, escrevi um microtexto, ainda sob os efeitos da anestesia. Nele, expus todo o meu esforço em controlar minha gravidez, meu parto. Nada saiu conforme o planejado e, inicialmente, bem inicialmente, senti-me injustiçada. Se eu tinha seguido todo o protocolo, cumprido todos os requisitos, obedecido a todas as regras, por que as coisas teimavam em caminhar por suas próprias pernas?

Naquele momento, dei-me conta de que justiça é um conceito puramente humano e isto foi escrito no tal microtexto com as mesmíssimas palavras. Somos ensinados, desde a mais tenra idade, ser tudo possível, bastando querer. Ser tudo alcançável, bastando seguir as instruções. Sermos todos vencedores em potencial, bastando persistir. De antemão, peço desculpas pelo spoiler a quem ainda não saiu desse estágio de dormência e apresento o que está por trás das cortinas: isso é uma grande mentira. O pódio não está à disposição de todos, só há ouro para um.

Acredito piamente no poder da resistência e do enfrentamento, na força de um desejo legítimo como motivadores e combustíveis do êxito. Certamente, quem segue a cartilha e não desiste com facilidade tem mais chances de vencer do que quem se entrega ao acaso. Certamente, também, as oportunidades, quando apresentadas a quem se prepara cuidadosamente para elas, têm mais chances de vingar do que quando se apresentam a negligentes e distraídos. Ainda assim, não há garantias.

O que vejo comumente, porém, é uma infinidade de especialistas de quitanda que se valem de conceitos como técnica e método científico, geralmente, por meio de um discurso bastante assertivo, vendendo certezas, caminhos fáceis, certos e seguros, passo-a-passo de chavões e outras cafonices. Uma turminha de gurus que não expõe em suas vitrines ciência, valores morais ou artísticos, mas tem na exibição de um suposto ganho financeiro próprio a isca para atrair um cardume de ingênuos.

Não vou mentir. Já caí nessa arapuca. Perdida, sem saber que rumo tomar, qual alternativa escolher, atendi ao meu lado crédulo, ao meu lado precário e me matriculei em um desses cursos on-line que prometem a felicidade plena, a riqueza e a glória para todo o sempre – e em três simples passos. A página inicial do curso oferecia um sem número de aulas. Todas intituladas de modo a atrair tolos mesmo. Cada aula se ligava a uma outra seguinte, onde supostamente estaria a resposta que eu buscava. Meu lado cético suspirava a todo instante: farsa! Mesmo assim, segui adiante. Tinha direito a sete dias de acesso gratuito e pretendia, nesse período, confirmar haver ali ou não a revelação do segredo.

Levei dois dias para solicitar o cancelamento de minha matrícula. Levei dois dias para cair em mim e perceber que a solução rápida e indolor que eu procurava não estava ali – e nem em qualquer outro lugar. Levei dois dias para atentar que certo mesmo está Jordan Peterson, quando afirma: “life is suffering“. Porque sofrer é mesmo inerente à vida. É um de seus elementos formativos. Resulta do choque constante entre desejo, ação, habilidade e possibilidade – variáveis personalíssimas que se atraem e se repelem em graduações demarcadas pelas circunstâncias do freguês. E não há alternativa. Não há porta de saída. Mesmo os que podem e ousam viver mimando a si próprios se sujeitam à dor. Mesmo os que podem e ousam atender a todo e qualquer desejo se sujeitam à dor. Talvez porque os recortes de prazer e felicidade que experimentamos sugiram a existência de um todo constante e sólido atingível e nos motivem a levantar da cama e nos manter em pé – embora não haja relatos autênticos ou evidências que a comprovem. A venda de práticas que ajudem a lidar e a conviver com as próprias frustrações, inclusive esta, não só é aceitável, como deve ser estimulada. A promessa e venda de caminhos livres de dor, merecimentos sem a imputação de forças físicas, morais e intelectuais intensas é desonestidade na sua forma mais descarada. Por isso, levar dois dias para me dar conta do óbvio, levar dois dias para me dar conta de que a vida não é justa, fácil ou indolor não me orgulha, ao contrário, me cobre de vergonha.

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